Batman Vs Superman: A Origem da Justiça
Para o alto e avante com um filme precioso e autoral.
No ápice de sua busca estética, o diretor-autor Zack Snyder surpreende com ‘Batman vs. Superman’, ao construir uma alegoria entre o fliperama e a política sobre o desamparo
Crise nas infinitas terras da representação do heroísmo: nestes tempos em que as HQs se tornaram o combustível da indústria audiovisual do entretenimento, ofertando à dramaturgia um formato inusitado e renovador (o de saga), a decadência da clássica noção de Bem alimenta Batman vs. Superman: A Origem da Justiça. Lançamento mais esperado deste primeiro trimestre, com um orçamento estimado em US$ 250 milhões, esta pedra fundamental para a Era de Ouro que a DC Comics pretende pavimentar nas salas exibidoras é um espetáculo autoral capaz de redefinir toda a potência imagética do diretor Zack Snyder e reafirmar a busca estética iniciada por ele em Madrugada dos Mortos (2004). Entre a alegoria política e o fliperama, numa narrativa adulta sombria, sem medo de sangue, o longa-metragem faz jus à confiança que os estúdios Warner depositaram sobre os ombros de Ben Affleck ao confiar ao galã o manto do Homem-Morcego. Seu desempenho é irretocável, trazendo um Batman pós-trauma, zangado e sem esperanças, menos existencialista do que o de Christian Bale.
Pela primeira vez, em quase 27 anos de permanência do Bat-Sinal nas telas, desde a gestão Tim Burton, o herói é afastado das influências simbólicas de Frank Miller e arquitetado mais sob a influência das HQs da década de 1970, de Denny O’Neil, Neal Adams e Dick Giordano, com uma certa inocência fantasiada de preto. É difícil não falar do Guardião de Gotham City primeiro, não só porque Affleck ofusca Henry Cavill, o protocolar intérprete do Homem de Aço, mas porque o diapasão simbólico do herói criado em 1939 por Bob Kane e Bill Finger reverbera uma quantidade de ondas jamais ultrapassável pelos encantos do último filho de Krypton.
Embora Snyder lute a fim de balancear os dois, Bruce Wayne é mais caudaloso do que Clark Kent e ajuda a marcar o que o roteiro – muitas vezes truncado – tem de melhor: a natureza detetivesca, com camadas e camadas de investigação no rastro de Lex Luthor. Aliás, um Lex Luthor para entrar para a História dos vilões de HQ da telona graças à gincana afetiva à qual Jesse Eisenberg, seu intérprete, aceita se submeter, com algo de Coringa e traços de Donald Trump em seus requebrados histéricos e seu cabelinho esvoaçante. É quase impossível crer que um papel que foi de um ator genial como Gene Hackman (no Superman de 1978 e seus congêneres com Christopher Reeve) possa ficar ainda melhor nas mãos de outro. Eisenberg encarou o desafio e venceu.

Herdeiro de um papel que foi do gênio Gene Hackman, Jesse Eisenberg cria um Lex Luthor histérico, mas grandioso, num desempenho que assusta e arrebata
Embora o título não a contemple, a Mulher-Maravilha também tem seu quinhão de brilho neste latifúndio pop, nas curvas da israelense Gal Gadot. Pela primeira vez, a heroína se liberta da aura Village People que ganhou no seriado dos anos 1970 com Lynda Carter e vira, de fato, um ícone do Feminino, com beleza, vigor e inteligência à mostra numa narrativa que explora seus dotes para brigar, sem descuidar de seu dom de pensar, refletir e surpreender. Gadot, no papel da amazona Diana Prince (alter ego da M-M), é um recheio de sabor entre platôs de terra carregada de signos políticos ligados ao desamparo: palavra que serve de bússola ao filme, começando por seus dois protagonistas.
Amparado pelos acordes da inspirada trilha sonora de Hans Zimmer, Snyder traça sábia analogia entre o mascarado de Gotham e o filho de Jor-El a partir da desamparada travessia de ambos da infância à vida adulta. Ambos são traumatizados pelo amor familiar: Wayne pela ausência dele, na morte de seus pais; Kent pelo excesso dele, na onipresença fantasma de seu pai terráqueo, vivido com carisma por um grisalho Kevin Costner. A clivagem da segurança no seio da família, ocasionada na vida de ambos por uma tragédia, fazem deles os heróis que são. E, frente a um mundo em desamparo, que anseia por deuses do Alto e rejeita quem vive da Noite, os dois se tornam mais do que nunca necessários, pois a carência de referencial gera Bezerros de Ouro do Poder, quase sempre fundidos por loucos como o Lex de Eisenberg.

Artimanhas do vilão justificam o duelo do título, que funciona mais para fomentar o nascimento da Liga da Justiça, os Vingadores da DC Comics, cuja formação é esboçada aqui com citações a heróis da água, do metal e da velocidade. Mas é melhor que o modo como cada um aparece fique em segredo, pois este será o trunfo da sequência já em estudo desta superprodução que, antes de tudo, serve para Snyder provar o autor sólido que é como cineasta. Desde seu cult sobre zumbis, Madrugada…, ele se fez como uma espécie de profeta do niilismo em Hollywood. Seus filmes refutam finais felizes e contestam a soberania da Bondade nas narrativas, pois cada the end filmado por ele carrega em si uma centelha de desesperança, uma percepção de que herói é aquele que precisa ser imolado, o Cordeiro de Deus a sangra pelo pecado do Homem.

Foi assim em 300 (2007), era esse o destino de Roschach em Watchmen (2009), deu-se o mesmo com as corujas falantes de A Lenda dos Guardiões (2010) e com as cocotas de shortinho no manicômio de Sucker Punch (2011). Nem Kal-El ele livrou de ter de sujar as mãos em Homem de Aço (2013): o bom moço máximo dos gibis foi forçado a matar para nos salvar da fúria de seu algoz Zod. Não por acaso, no meio de Batman Vs. Superman, Kal-El profetiza: “Nem tudo permanece bom!”. Ele tem razão: na América sobre a qual Snyder fala, as virtudes do altruísmo viraram tão irreais e impalpáveis como as histórias em quadrinhos. Não por acaso ele cita, frontalmente, as HQs de John Byrne, o quadinista que desconstruiu o Super-Homem nos anos 1980, humanizando-o na esfera do desejo e da fraqueza moral: mitos existem para serem quebrados e mais tarde refeitos como lendas.
É por isso que (cada vez mais) precisamos delas: para ver o esboço de civilização que nos tornamos e nos distanciar desse rascunho. É hora de arte-final. Não por acaso, na forma, o longa de Snyder é tão bem acabado em seu parque de efeitos especiais, com um realismo que sustenta criaturas apocalípticas e explosões de mísseis no espaço. A fotografia de Larry Fong (da série Lost) vai e vem do realismo, vai e vem do chiaroscuro, vai e vem do onírico, fazendo convergir sonho e fato, perplexidade e abstração. São extremos em comunhão, como o Morcego e o Kryptoniano, juntos num filme que conjuga ação (em coreografias de tirar o fôlego) e razão, na busca por entender o ponto político em que chegamos e aonde vamos. Para o alto e avante!
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