‘A Praça é Nossa’ da Marvel
Desrespeitoso com a mitologia do Deus do Trovão, 'Ragnarok' joga no lixo a essência épica dos filmes de super-herói em prol de piadinhas sem ritmo e de uma lógica sexista

Rodrigo Fonseca
Já nos “finalmentes”, 2017 é o ano do terror, vide os US$ 654 milhões acumulados por It: A Coisa e todo o prestígio (cercado de verdinhas) de Corra!, com sua reflexão racial. O esperado Jogos Mortais: Jigsaw, que chega às telas dos EUA neste Halloween, deve esquentar ainda mais a temperatura do Além. Mas também houve, no panteão dos exibidores de 2017, lugar nobre para os mais rentável dos nichos da década: os filmes de super-herói. Estes não falham… até agora: Mulher-Maravilha somou US$ 821 milhões; Homem-Aranha: De Volta ao Lar abocanhou US$ 879 milhões; o genial Guardiões da Galáxia 2 (melhor de todos) arrecadou US$ 863 milhões; e o western Logan papou US$ 616 milhões com sua sintomática de Rastros de Ódio. Esses números só mostram o quanto os filmes de super-heróis são o sustentáculo da economia cinematográfica. E estes são, por essência, épicas de autossacrifício: existem cordeiros que se oferecem à imolação em prol da Humanidade. Não existe humor na espinha dorsal desse gesto. Pode haver gargalhada como apêndice, como efeito de oxigenação da tensão, como um respiro para o que há de bruto na peleja do sacrificado contra a moléstia moral que o leva a se arriscar em prol de quem precisa de auxílio. Pode e deve, pois o riso é um convite ao carisma. Mas esse riso não pode superpor a essência das narrativas super-heróicas, cuja gênese quadrinística vem da ação, da aventura, da adrenalina e não da troça. Tem quadrinho pra rir e tem quadrinho de super-herói. É assim desde as primeiras viagens galácticas de Buck Rogers, em janeiro de 1929: a pedra fundamental pop do filão. Mas o diretor Taika Waititi não entendeu isso muito bem quando finalizou o corte do histérico Thor: Ragnarok, o mais vazio dos longas-metragens da grife Marvel.
No desespero de dar ao conglomerado das bandas desenhadas um novo Deadpool – uma produção de US$ 58 milhões da Fox, que, em 2016, arrecadou US$ 783 milhões nas bilheterias -, o cineasta neozelandês resolveu substituir a seriedade épica comum aos vigilantes uniformizados por galhofas sucessivas: é piada atrás de piada, mesmo nos momentos em que elas são desnecessárias. O resultado beira um programa humorístico, um A Praça é Nossa no solo de Asgard. O problema: Deadpool é um personagem terciário, um coadjuvante dos X-Men decalcado do Homem-Aranha pelo quadrinista Rob Liefield, que ganhou fama por sua iconoclastia oportunista, coisa que não cabe na figura do Deus do Trovão. Há um detalhe que o senhor Waititi parece não ter percebido: Thor é uma divindade, com aura mítica, cujos feitos carregam uma metafísica próxima do Sagrado. Thor merece respeito. E suas revistinhas sempre alimentaram essa respeitabilidade, pois ela está na medula do herói nórdico. Sem ela, sobre apenas um herói caído. E um filme caidaço… Até porque… assim como Thor não é descartável como Deadpool, Chris Hemswoth tem um peso trágico em seu leque dramático que Ryan Reynolds nunca alcançará.

Realizador do marromeno O Que Fazemos Nas Sombras (2014), Waititi tem ralo domínio das dinâmicas de combate: seu cinema é chiste sob chiste. Por isso, Thor Ragnarok soa anacrônico como filme de super-herói. Parece uma comédia barata dos anos 1980, tipo um Sem Licença Para Dirigir (1988) com gente superpoderosa. O uso do Hulk beira o ridículo. O mais grave é o desperdício de uma personagem com ethos de tragédia, como Hela, a deusa da Morte. Nem Cate Blanchett salva sua figura, tendo algum diferencial apenas na sensualidade que injeta na vilã. O único ator que encontra aqui algum porto seguro é o fatigado Anthony Hopkins, na pele de Odin. Como este já desistiu de seu passado glorioso como intérprete, passando a desperdiçar seu vozeirão em qualquer bobagem, ele acaba se destacando aqui como jamais conseguiu nesta franquia asgardiana. Franquia cujo ápice veio em O Mundo Sombrio, de 2013, este sim um espetáculo divertido e tenso.

Com dramaturgia, num exercício de preguiça, Ragnarok é uma mistura de Odisseia com O Guia do Mochileiro das Galáxias: um Ulisses cheio de aretai cai numa jornada da qual não consegue sair, mergulhado num espaço sideral lisérgico, no qual se ouve Led Zeppelin. Essa mistura seria boa se o tempero do desvario não viesse excessivo, fazendo com que a cruzada de um deus para enfrentar a Morte em pessoa parecesse um episódio de Saturday Night Live. Pior que isso é a submissão de Waititi à lógica contemporânea do emasculamento, fazendo de Thor o que se chama hoje de homem difícil, ou seja, uma figura masculina destituída de sua potência. A destruição do martelo nas cenas iniciais é um signo de castração.
Hemsworth faz o que pode para entretar a plateia. Mas sob um martelo mais pesado que seu Mjölnir – o martelo da hipocrisia sexista – sobra a ele tomar catiripapos e sofrer humilhações. Por sorte, Mark Ruffalo e Idris Elba estão ali, respectivamente como o Dr. Bruce Banner e o porteiro divino Heimdall, para dar alguma dignidade ao filme. Mas a contribuição deles não isenta o cinema de super-herói da chacota. Sobra um filme indigno. Assim como o horror, como dito lá em cima, anda em alta, a comédia, como gênero, anda em baixa. Querem compensar essa queda de popularidade fazendo chanchada com os Vingadores. Cuidado: foi isso o que aconteceu com o cinema de ação, no auge do políticamente correto (anos 1990), quando Jackie Chan e Will Smith explodiram. E foi ali que aquele filão degringolou, até ser salvo por Sylvester Stallone na série Os Mercenários e por Vin Diesel em Velozes e Furiosos. Há que se ter atenção.
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