Cannes testemunha incesto e revela pérolas
No sexto dia do festival, quando atrações imperdíveis se estabelecem no gosto da crítica, a Croisette confere novo trabalho da diretora de 'A guerra está declarada': uma 'love story' entre irmãos

CANNES – Embora tenha sido esnobada pela ala mais careta da crítica europeia, por sua opção de falar sobre a paixão numa abordagem descabelada, gritada e babada, com o colorido à flor da pele e música atrás música, “Marguerite et Julien”, de Valérie Donzelli (“A guerra é declarada”), reafirmou o lugar da love story como um gênero narrativo na briga pela Palma de Ouro de 2015. Este ano, o Festival de Cannes deixou-se inflar de histórias de amor, como foi o aclamado “Carol”, de Todd Haynes, que, desde sábado, segue no posto de filme-quindim da Croisette. Mas, falando de um incesto entre irmãos, o longa-metragem de Valérie põe o nicho das tramas românticas a um só tempo na trilha do trágico e na rota do pop, tirando um enredo aparentemente baseado em fatos reais, relativos ao século XVII, e trazendo-os para uma reconstituição caricata dos anos 1800, mesclada a elementos contemporâneos. É o caso do helicóptero que passa pela tela mais de uma vez ou dos acordes pós-modernos na trilha composta por Yuksek, muso da rítmica eletrônica na França. O resultado é algo parecido com as misturas barroco-operísticas de linguagens audiovisuais feitas pelo diretor brasileiro Luiz Fernando Carvalho (“Lavoura arcaica”) na TV, vida “Capitu” (2008) ou “Alexandre e outros heróis” (2013).
A porção Carvalho de Valérie arrancou aplausos pela maneira como ela aplica tempos de encenação teatrais na condução dos atores, sobretudo os protagonistas Anaïs Demoustier e Jérémie Elkaïm, parceiro da cineasta na arte e na vida a dois. Ele se sai melhor no duo principal, com um gestual expressivo a favor da construção de um herói romântico à mercê do desejo pela irmã. O interdito social vai fazer da dupla alvo de uma caçada da justiça. A participação de Geraldine Chaplin como uma matriarca espanhola que cruza o caminho de Marguerite garantiu momentos de humor à projeção.
Agora, passados seis dias de festival, no meio do caminho para o resultado, já é possível extrair uma listinha de cinco filmes imperdíveis revelados por Cannes fora da competição. Vamos a ela:
- “Les deux amis” (na foto): Louis Garrel, galã cultuado na França, já havia mostrado sua potência como diretor em curta e média-metragem. Na estreia como realizador de longas, ele faz jus aos conhecimentos sobre a arte de enquadrar herdados do pai, o cineasta Philippe Garrel, ao narrar uma disputa amorosa a três. O roteiro é dele e do diretor Christophe Honoré, de “As canções de amor” (2007);
- “Paulina”: Atestado de maturidade para o cineasta Santiago Mitre, de “O estudante”. Revelação argentina (sempre eles e não nós, por quê?) da vez, este drama social de direção impecável mostra as sequelas do altruísmo na vida de uma representante da classe média que se arrisca a “descer” aos infernos da exclusão;
- “Cemetery of splendour”: Soa inexplicável o diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul não estar na briga pela Palma dourada com este exercício magistral no qual magia, política e conceitos visuais de videoarte se fundam numa experiência metafísica sobre a identidade cultural de um país. Na trama, soldados com uma doença do sono misteriosa são levados para uma clínica que serve de ponte para um mundo místico. É o coração da selva batendo a mil;
- “Quintal”: O mineiro André Novais Oliveira se firma como um dos maiores cineastas brasileiros da atualidade mesclando sua vida pessoal, documentário e ficção numa trança inventiva onde não se sabe onde começa um e onde acaba o outro;
- “Las elegidas”: O cinema mexicano berra sua excelência de linguagem na atual cena latino-americana com uma história de amor sensual no qual um jovem tenta tirar sua paixão da “vida”, arrumando uma mulher que aceite se prostituir no lugar dela. O nome deste enamorado: Ulisses, o que evoca elementos míticos nesta “Odisseia” terceiromundista sobre vias alternativas de inclusão social.
Do concurso, tudo indica a vitória de “Saul fia” (“Saul’s son”), lá da Hungria. Mas o melhor até aqui, aos olhos do ALMANAQUE VIRTUAL, seria:

- Cada fotograma de “Mia madre”, de Nanni Moretti (na foto com Margherita Buy);
- A direção de “Carol” de Todd Haynes, com especial menção à montagem do brasileiro Affonso Gonçalves
- O roteiro de “Louder than boms”, de Joachim Trier e o fato de Isabelle Huppert (sua estrela) existir;
- A atuação de Vincent Lindon em “La loi du marché”, surpresa-mor do certame até agora.
Quem mais merecia ganhar uma Palma mas não vai conseguir por ser grande demais:
“As 1001 noites”: O português Miguel Gomes faz jus à tradição de grandes cineastas de sua pátria (Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Pedro Costa) resgatando o mito de Xerazade numa experiência narrativa de fato e ficção espalhados por seis horas fatiadas em três volumes. Sua Xerazade, Crista Alfaiate, é uma deusa lusa.