O Segredo das Águas

O filme da japonesa Naomi Kawase inicia-se com uma belíssima tomada na praia, onde vemos por alguns longos minutos o vai e vem do mar. Essa vicissitude das águas trás um corpo, um corpo morto, que é encontrado por Kaito (Nijiro Murakami). Com isso, já percebemos desde o início que a película trata de elementos dicotômicos naturalísticos que embebem a nossa concepção cotidiana de vida nos trazendo uma reflexão interessante: a morte como um fim em si mesmo ou a morte como um momento de reconstrução e reestruturação? E porque não ambas as assertivas misturadas? Apesar do cenário se passar em uma ilhota japonesa interiorana (Amami-Oshima), podemos facilmente transpor as angustias vivenciadas pelos dois personagens principais, o casal de namoradinhos Kaito e Kyoko (Jun Yoshinaga) para qualquer época e qualquer nacionalidade, mesmo havendo a diferença cultural entre ocidente e oriente. Afinal, “O segredo das águas” (“Futatsume no mado”, no original) trata de temas universais como a descoberta do primeiro amor, medo, liberdade, sincretismo, morte, renascimento e reconstrução.

Kaito tem que lidar com a perda do pai que advém de uma forma institucionalizada, o divórcio, e Kyoko com a perda da mãe que está prestes a morrer devido a uma enfermidade. Ambos lidam de forma radicalmente distinta com a ausência/morte. O primeiro tem bastante dificuldade de entender o porquê de não estar com seu pai, já a menina, apesar da tristeza, lida bem com o fato de sua mãe em breve ter que perder a vida. Essa aparente facilidade se dá ao fato da mãe de Kyoko ser uma xamã daquela comunidade e com isso a morte é encarada de forma lírica e transcendental. Apesar dos diálogos belíssimos em que a mãe-Xamã Isa (Miyuki Matsuda) conforta Kyoko para o fim que se aproxima, temos no pai da menina o elemento mais soberbo e catalisador das emoções daquela família que em breve perderá o ente que é o elo de ligação não só entre eles, mas também entre eles e seu lado espiritual, além de toda uma comunidade. Comparando a vida a uma onda ele diz ao jovem casal angustiado que “as ondas consomem todo tipo de coisa. É algo incrível. Quando surfamos, temos que lidar com o último estágio de uma onda que se originou longe da costa. Aos unir-nos a esta onda, por seu último instante, ela carrega uma energia incrivelmente poderosa. Então, quando você sente essa força, com todo o seu corpo, por um momento ele se transforma em nada. Nada, ou vazio. De qualquer forma, há a sensação de que tudo, incluindo nós mesmos, permanecemos totalmente serenos. A onda chamada Isa era, pra mim, na minha vida, a melhor onda de todos os tempos”.

Em contrapartida, Kaito vive em uma Ilha e tem medo do mar, portanto, ironicamente, não sabe nadar. As metalinguagens que envolvem os dramas pessoais/familiares com as ondas do mar são estonteantes e nos fazem imergir na trama assim como no lindo mergulho que é espelhado no cartaz do filme. Ao aprender a nadar, Kaito redescobre em si mesmo, as suas potencialidades enquanto ser humano, deixando para trás as amarguras que a vida vai lhe imprimindo. Não se despe apenas das roupas, mas também de todos os sentimentos que pretende esquecer ou superar.

Em um momento ímpar da cinematografia contemporânea temos dois filmes bastante ousados e semelhantes em termos de cenário, plano de fundo e construção narrativa, que de alguma forma dialogam entre si, mesmo tendo sido concebidos praticamente ao mesmo tempo. São eles, o japonês aqui em questão e o brasileiro “Ventos de Agosto” (2014, de Gabriel Mascaro). Nestes dois trabalhos vemos personagens que não vivem nos grandes centros urbanos e que permeados pelo tema da morte/velhice/transformação agregados pelos elementos da natureza mar/ventos buscam refletir acerca da sua própria existência e, por conseguinte, sobre as transformações da vida, seja através de cabras, cocos ou cadáveres. Em ambos vemos o processo de descoberta que é inerente à condição humana com mais questionamentos que respostas, numa experiência contemplativa esfuziante. Com uma câmera na mão e uma curiosidade antropológica Kawase e Mascaro transformam seus olhares em uma introspecção autobiográfica harmônica e obstinada.
Avaliação Samantha Brasil
